A fábula do lobo traficante
(Fernando Portela)
A sociedade dos cordeiros condenou aquele lobo a 20 anos de prisão. Era terrível o seu crime: tráfico de entorpecentes. Por sua causa, milhares de cordeirinhos destruíram suas vidas. O lobo era o inimigo público número 1.
Vinte anos depois, apesar desse e de outros lobos traficantes terem sido presos, a sociedade dos cordeiros estava mergulhada no vício. Era um problema de segurança nacional. Talvez por isso, um repórter resolveu entrevistar aquele lobo à saída da penitenciária. Estaria ele arrependido? Teria consciência do que provocara? Sentia-se injustiçado?
Afinal, a sociedade dos cordeiros cumpria, rigorosamente, a Lei. Só que alguma coisa estava errada. Lobos traficantes eram presos todos os dias, enquanto aumentava o consumo de tóxico. Qual a opinião de um lobo que pagou 20 anos por um dos piores crimes contra a humanidade?
– Você quer mesmo saber? – foi logo falando o lobo – O problema não se restringe a mim nem aos que me seguiram nessa profissão. Eu cometi parte do crime, reconheço, comercializando um produto proibido.
– E quem cometeu a outra parte? – indagou o repórter, ele próprio irritado com a desfaçatez do lobo.
– Ora, a sociedade dos cordeiros! – afirmou o lobo – Acaso fui eu que provoquei a corrida ao tóxico? Como seria possível eu me tornar um traficante se não houvesse procura do meu produto?
“Isso faz sentido”, pensou o repórter. E arriscou uma outra pergunta:
– Como a sociedade dos cordeiros poderia ter evitado tudo isso?
– Ora, pergunte a ela – respondeu o lobo – Mas dificilmente a sociedade dos cordeiros concordará que tem parte dessa culpa. Para isso, seria necessário que cada cordeiro, em particular, meditasse sobre sua própria vida e o que considera melhor para o seu rebanho. Mas você sabe que meditar, refletir, ponderar e se auto-analisar é muito difícil, quando há tantos lobos à disposição para assumir todas as culpas.
Quando a entrevista com o lobo traficante foi publicada, a sociedade dos cordeiros reagiu: os lobos são criminosos irrecuperáveis, cínicos, arrogantes e diversionistas. Para eles, só mesmo a Pena de Morte.
(Fernando Portela. Gazeta do Povo, Curitiba, 15/03/1984. Apud: Reflexão e Ação em Língua Portuguesa, 8.ª série, Marilda Prates, Editora do Brasil S.A., São Paulo, 1984. Crédito das ilustrações: http://office.microsoft.com/pt-br/clipart/results.aspx?qu=lobo&sc=20&CategoryID=CM790019021046.